| Name: | Description: | Size: | Format: | |
|---|---|---|---|---|
| 1.33 MB | Adobe PDF |
Authors
Advisor(s)
Abstract(s)
A Song of Ice and Fire, de George R. R. Martin, juntamente com a sua adaptação televisiva por parte do canal HBO Game of Thrones (2011-2019), afigura-se como um dos principais fenómenos culturais do século XXI, questionando as estratégias narrativas convencionais da Fantasia1, bem como a representação da Idade Média na contemporaneidade. A sua popularidade deu origem a convenções de fãs, conferências académicas, cursos universitários e a toda uma panóplia de discussões e teorias sobre a narrativa e as suas personagens. A obra de Martin suscita debates e polémicas em diversas áreas da sociedade, onde a sua presença é visível, desde a publicidade, à política e ao humor, provando ser uma obra socialmente agregadora, ainda que advenha de um género que foi, durante muito tempo, considerado como tendo pouca credibilidade. De facto, o género da Fantasia tem sido, tradicionalmente, associado a um baixo valor literário, mais virado para o sucesso comercial. Tem sido, além disso, considerado demasiado escapista e pouco sério. No entanto, Ice and Fire e Game of Thrones receberam aclamação crítica, provando que a Fantasia pode debruçar-se sobre temáticas relevantes para a sociedade e a cultura dos dias de hoje, oferecendo um meio de reflexão sobre o mundo do leitor, ou espectador, num espaço disruptivo e com características diferentes desse mesmo mundo, que permitem um certo distanciamento.
Assim, torna-se importante o estudo de Ice and Fire, enquanto obra em que se discorre sobre muitos dos problemas que afectam a sociedade contemporânea. O género em que se enquadra, embora considerado marginal e ainda pouco analisado no âmbito académico nacional, não deixa de ser um dos mais consumidos nas suas várias formas (literatura, televisão, cinema, videojogos), mostrando que se torna relevante estudar este tipo de temáticas. Neste sentido, a obra é particularmente significativa, uma vez que nela está presente o uso de heranças culturais do passado, nomeadamente a Idade Média europeia, que são continuamente revisitadas, moldadas e transformadas. Esta constante revisitação do passado espelha uma sociedade que enfrenta uma crise de valores – com a UE a enfrentar desafios geopolíticos que ameaçam a sua desagregação – e que encontra, na Fantasia, uma forma de lidar com essa crise e de contribuir, internamente, para a resolução dos problemas do mundo no contexto actual. Assim, a presente tese torna-se inovadora, uma vez que são raras ou inexistentes as reflexões sobre o porquê desta apropriação e adopção do período medieval na contemporaneidade, e de como Fantasia e realidade se espelham mutuamente e moldam o nosso entendimento do passado, do presente e colocam questões pertinentes para o futuro. Desta forma, os principais objectivos desta tese são: contribuir para a compreensão da presença da cultura medieval na literatura de Fantasia, em especial na forma como ela é utilizada na construção do mundo de Ice and Fire de Martin, bem como analisar de que forma e com que propósitos o autor adopta e subverte estruturas narrativas tradicionais da Fantasia e da representação de elementos medievais.
As primeiras formas de ficção escrita que existem contêm elementos que podem ser entendidos como fantásticos, ainda que não se possa considerar que sejam obras de Fantasia. É o caso das obras clássicas greco-romanas, os romances medievais e os textos mitológicos, por serem histórias sobre deuses e heróis e por possuírem aqueles que são considerados os motivos básicos dos textos de Fantasia, como a presença da magia, monstros, feiticeiros, e mundos sobrenaturais. Embora entendida ora como literatura de escape, ora como um mundo legítimo regido por leis internas próprias, onde se questiona e se reflecte sobre o mundo real, a literatura de Fantasia tem tido a inspiração medieval como elemento constante para a construção dos seus cenários, ligação essa que permanece pouco explorada. No caso de Ice and Fire, a Idade Média apresentada por Martin pretende ser, não um retrato fiel do período, mas uma forma de reflexão sobre esse mesmo período e sobre a contemporaneidade.
Assim, um dos primeiros conceitos a ser explorados é o de Fantasia, desde a sua génese até aos dias de hoje. Numa primeira parte, irão ser traçadas as fontes da Fantasia moderna, que recuam aos mitos, contos populares e contos de fadas, e irá analisar-se de que forma essas fontes se vão transformando e evoluindo ao longo dos séculos e quais as diferenças entre elas. Elas são importantes porque irão influenciar a estrutura narrativa, a construção das personagens e a presença de elementos basilares nas obras de Fantasia contemporâneas, demonstrando que a literatura, na sua forma oral ou escrita, tem tido quase sempre elementos fantásticos. Será ainda possível perceber que a Fantasia enquanto género surge durante o século XVIII no contexto do Romantismo e a partir da discussão sobre a criação artística, principalmente a partir dos conceitos de “imagination” e “fancy”, sendo posteriormente desenvolvida pelos dois autores que são considerados os pais da Fantasia moderna: J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis.
Depois de definidas as fontes do fantástico, a presente tese pretende discorrer sobre o conceito de Fantasia, de que forma tem evoluído e o que pensaram os mais importantes teóricos sobre o género. Nesse sentido, escolheu-se dividir a teorização em duas partes distintas. A primeira parte lida com autores que reflectiram sobre o fantástico enquanto presença do sobrenatural numa narrativa, como é o caso da literatura gótica.2 Neste sentido, o fantástico foi concebido como um elemento que subverte a realidade, mas também como um impulso inerente a qualquer tipo de literatura, uma vez que a Fantasia pode ser vista como qualquer quebra com a realidade consensual. Assim, os autores mais importantes que pensaram sobre a Fantasia nestes moldes e que serão abordados nesta primeira parte teórica, são Tzvetan Todorov, Rosemary Jackson e Kathryn Hume. A segunda parte lida com uma teorização mais próxima daquilo que se reconhece como Fantasia moderna e que se pode verificar em Ice and Fire. Desta forma, autores como Tolkien, Brian Attebery, Kathrerine Fowkes e Farah Mendlesohn são basilares para perceber de que forma são construídos os mundos fantásticos. Nesse sentido, será dada especial ênfase a um dos textos mais significativos e importantes para a Fantasia contemporânea, que providencia uma definição de Fantasia, e que examina a criação de universos fantásticos através do conceito de Mundo Secundário, que caracteriza o autor como um sub-criador e que reflecte, sobretudo, sobre a arte da criação literária: “On Fairy Stories”, de Tolkien. Para além de Tolkien, serão abordados os conceitos de: “fuzzy set”, de Attebery, autor que analisa a Fantasia enquanto um conjunto de textos que possuem elementos em comum, cuja principal característica é o impossível; “ruptura ontológica”, proposta de Fowkes para quem a Fantasia rompe com aquilo que é reconhecido como a realidade consensual para retratar realidades com características impossíveis de existirem no Mundo Primário, o mundo do leitor; e “Fantasia Imersiva” que, segundo Mendlesohn, é um dos vários tipos de construção de mundos fantásticos. Esta última autora abandona uma tentativa de definição de Fantasia para se concentrar nas estratégias narrativas que permitem ao leitor relacionar-se com os universos criados pela Fantasia. No segundo capítulo serão tidos em atenção os conceitos de Medievalismo e Neomedievalismo, de forma a providenciar uma reflexão sobre a representação da Idade Média a partir do final século XVIII e que se expressa em diversas formas artísticas, nomeadamente na literatura, na pintura e, nos dias de hoje, até no cinema. Será tido em conta, primeiramente, o contexto histórico-social dos séculos XVIII e XIX que permitiu o surgimento do Medievalismo, mas também evidenciar movimentos artístico-literários como o Romantismo, o Revivalismo Gótico e a relevância dos Pré-Rafaelitas, bem como o surgimento do romance histórico, com Walter Scott, que irá recuperar temas e imagens reminiscentes do período medieval, apelando a valores, ideologias e sentidos estéticos do passado. Será possível verificar que este movimento acabará por criar uma visão da Idade Média idealizada que tem vindo a ser perpetuada e constantemente recuperada, de forma a reflectir atitudes contemporâneas sobre o período e sobre a sociedade actual. Para tal, será necessário recorrer a autores fundamentais para o estudo do Medievalismo, como Alice Chandler, Umberto Eco, Leslie Workman e David Matthews, fulcrais na criação do Medievalismo enquanto área de conhecimento merecedora de estudo em ambiente académico e que contribuíram para a reflexão sobre os usos do passado na contemporaneidade. No entanto, este Medievalismo, que tem uma visão marcadamente nostálgica sobre o passado da Idade Média, difere em grande parte do conceito de Neomedievalismo. Será possível verificar, assim, que o Neomedievalismo não pretende ser historicamente fiel à Idade Média, não possui qualquer marca de nostalgia pelo passado e parece estar mais associado à criação de mundos fantásticos que, consequentemente, acabam por subverter muitas das representações medievais tradicionais. Além desta subversão, permite, ainda, reflectir não só sobre o passado medieval, mas também sobre a actual percepção da Idade Média e o que tal signifca. De facto, é deste Neomedievalismo que Ice and Fire parece mais próxima, uma vez que Martin, apesar de afirmar a sua autoridade através da alegação de exactidão histórica e de realismo em relação à representação da Idade Média, subverte e desconstrói muitos dos estereótipos que têm vindo a ser perpetuados em obras de Fantasia, mas também em obras de ficção histórica. Nesse sentido, é importante perceber as motivações do autor, que elementos são modificados e porquê.
Na última parte da presente tese irá proceder-se à análise de A Song of Ice and Fire, uma vez que esta obra de enorme sucesso, à escala nacional e internacional, emerge como uma das mais importantes da actualidade, por levantar questões pertinentes quanto ao género da Fantasia e à representação da Idade Média. Embora inacabada, é possível fazer um levantamento dos elementos, temas e características reminiscentes do período medieval e examiná-los, ainda que a presente tese se foque especialmente nos três primeiros livros que compõem a saga literária: A Game of Thrones (1996), A Clash of Kings (1998) e A Storm of Swords (2000). Esta escolha prende-se com o facto de os temas e personagens seleccionados para análise estarem mais presentes nos volumes acima mencionados e não tanto nos dois volumes seguintes que compõem a saga até à data, A Feast for Crows (2005) e A Dance With Dragons (2011). Assim, a obra será explorada como um exemplo de Fantasia neomedievalista que subverte e desconstrói grande parte das pré-concepções sobre narrativas de cunho medievalista, em especial quando enquadradas no âmbito da literatura de Fantasia.
Uma vez que seria impossível explorar todos os elementos medievais que Martin utiliza e questiona, decidiu-se circunscrever o presente estudo a três temas principais. O primeiro consiste em verificar os paralelismos entre Ice and Fire e elementos presentes em obras da literatura medieval, de forma a perceber de que maneira o autor evoca as estruturas narrativas literárias do período. O segundo prende-se com a análise do modo como Martin desconstrói a instituição da cavalaria e a figura do cavaleiro, principalmente através de três personagens: Jaime Lannister, o cavaleiro que cai em desgraça e sofre uma crise de identidade; Brienne de Tarth, uma mulher que tenta desempenhar um papel que é, tradicionalmente, masculino; e Sansa Stark, a figura da donzela em apuros que nunca é salva pelo cavaleiro galante e perfeito. Será argumentado que os três apresentam visões idealizadas e romantizadas da cavalaria que, posteriormente, são destruídas e questionadas através das experiências que têm, de forma a provocar um questionamento também por parte do leitor. A última temática a ser analisada é a da representação da mulher em obras de Fantasia neomedievalista, com particular foco nas personagens Cersei Lannister e Melisandre. Ambas correspondem à figura da vilã da história, apresentando-se como os estereótipos da rainha maléfica e da bruxa, respectivamente, ainda que as duas sejam influenciadas e vivam numa sociedade patriarcal e misógina que não pretende atribuir qualquer tipo de poder a figuras femininas. Desta forma, pretende-se verificar de que forma ambas lutam contra essa mesma sociedade que as condiciona, que tipo de poder têm e quanto desse poder conseguem manifestar, sempre tendo em consideração a representação da mulher na literatura e na cultura medieval, estabelecendo paralelismos quando tal se verificar relevante. Para este capítulo, serão vitais as considerações de Shiloh Carroll, uma das mais importantes investigadoras sobre Neomedievalismo e sobre a obra de Martin, mas também de Carolyne Larrintgton, Carol Parrish Jamison e de várias obras que reúnem textos de investigação sobre Ice and Fire editadas por autores como Bartlomiej Blaszkiewicz, Jes Battis e Susan Johnston, e Brian A. Pavlac.
Assim, a presente tese pretende assumir-se como um trabalho sério sobre um género que, tantas vezes, foi considerado marginal na literatura, mas que reflecte sobre questões de natureza humana, social, cultural e até filosófica, que revela as mais variadas formas como o passado medieval pode ser utilizado para construir mundos fantásticos, mas que também pensa sobre esse passado e, através dele, sobre o presente. Pretende-se, ainda, que este trabalho sirva como mais um passo no estudo destas matérias, de forma a desenvolver e optimizar novas áreas do saber no contexto nacional.
Description
Keywords
Martin, George R. R., 1948-..... Song of ice and fire Game of thrones (Série televisiva) - Temas, motivos Literatura fantástica americana - Temas, motivos Ficção científica americana - Temas, motivos Medievalismo (Estética) - Na literatura Medievalismo (Estética) - Na televisão Idade Média - Na literatura Teses de doutoramento - 2020
