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A presente dissertação constitui um estudo de caso sobre o processo de criminalização
e julgamento da polícia política do Estado Novo português (PIDE/DGS), durante o período da
transição democrática (1974-76). O objectivo é interpretar como se processou a justiça
transicional em Portugal em articulação com as restantes dimensões da transição democrática,
enquanto produto de uma interacção.
O processo de criminalização e julgamento da PIDE enquadra-se na literatura sobre o
que é habitualmente descrito como justiça transicional, traduzida pela forma de lidar com o
passado (dealing with the past) no contexto específico da mudança de regime. Perante a
dificuldade de delimitação do fenómeno e definição do conceito, foi tida em conta a literatura
crítica à concepção dicotómica do problema – esquecimento e perdão versus punição e
criminalização (Hungtinton, 1991) – que remete para a compatibilidade de medidas existentes e
que passam por amnistias, comissões de verdade, saneamentos/ lustração, julgamentos,
compensação de vítimas, etc. (Welsh, 1996; Amstutz, 2005; Sikkink and Walling, 2006).
Neste sentido, a justiça transicional é aqui definida como o conjunto de decisões e
procedimentos de deslegitimação de um passado caracterizado pelo uso abusivo da força e da
violência – independentemente da sua intensidade e alcance – levado a cabo por elites e
instituições ditatoriais. A justiça transicional surge no contexto de princípios e valores
democráticos emergentes, sendo desencadeada pela mudança de regime. Os seus recursos
podem existir previamente ou ser excepcionalmente criados com maior ou menor peso legal,
financeiro ou simbólico e com o objectivo de promover ou evitar quer a responsabilização
(accountability) quer a reconciliação. Sendo um acto de justiça, o conjunto das decisões e
procedimentos tende a ser punitivo, mas pode igualmente restringir-se a formas de assegurar a
compensação das vítimas (restoration) ou evitar a retribuição face aos responsáveis (retribution).
Neste sentido, é o produto de constrangimentos e interesses colectivos distintos – domésticos
e/ou internacionais – que podem ser legados do passado ou surgir em face das estruturas de
oportunidade e clivagens associadas a novas instituições, elites e grupos de interesse.
A hipótese teórica de partida foi adoptada com base no trabalho de Huntington (1991),
segundo a qual transições por ruptura produzem processos de punição enquanto que transições
por negociação tendem a não resultar na criminalização da sua elite. A investigação foi
complementada com a elaboração de uma hipótese exploratória, segundo a qual seria de
esperar que à medida que a transição deu lugar à consolidação democrática, a justiça
transicional em Portugal terá evoluído de punitiva para reconciliatória.
O modelo analítico utilizado foi adaptado de Helga Welsh (1996) e Jon Elster (2006), e
englobou três dimensões: factores históricos (background factors) – natureza e duração do
Estado Novo (Schmitter and O’Donnell, 1986; McAdam, 1997; Elster, 2004), grau de repressão
da PIDE/DGS e o seu papel enquanto instituição repressiva (Feine, 2006; Sikking and Walling,
2007), a existência de uma guerra colonial e o tipo de transição democrática (Huntington, 1991)
– contexto político (political setting) – crise de Estado (presença de forças políticas
conservadoras, simultânea democratização e descolonização, e papel político dominante dos
militares) (Cerezales, 2003; Pinto, 2006), natureza das forças da oposição (Brito, 2001),
mudanças no sistema partidário e dinâmica da acção colectiva – e motivações ligadas ao
comportamento dos actores – subdivididas em emoções, interesses político-partidários e
concepções de justiça (Elster, 2004).
A investigação teve por objectivo interpretar a interacção entre aquelas dimensões,
considerando que os factores históricos devem ser tidos em conta quando analisando o contexto
político e as motivações dos actores, considerando que estas por sua vez actuam e são
influenciadas por aquele, de onde resulta o processo geral de incriminação e julgamento da
polícia política.
Neste sentido, dada a existência de uma crise de Estado em Portugal no contexto da
transição democrática, considerou-se relevante avaliar as motivações do comportamento dos
actores, recolhendo directamente elementos sobre a interacção entre a elite militar e a elite civil,
conflictos internos entre forças conservadoras, moderadas e radicais face ao tema, e percepções
individuais sobre a colaboração entre as forças armadas e a polícia política na Guerra Colonial (7
entrevistas não-directivas).
Dada a dinâmica de acção colectiva e a natureza das forças da oposição, procurou-se
captar o tipo, intensidade e variação das reividicações da sociedade civil e sua articulação com
os partidos políticos (imprensa da época). Considerou-se ainda relevante medir o peso relativo
da dimensão legal (análise qualitativa da legislação), assim como a posição dos partidos
políticos, com base na argumentação sobre legitimidade democrática versus revolucionária
(análise de conteúdo de debates parlamentares)
Finalmente, tendo em conta os dados sobre a natureza e duração do Estado Novo, nível
de reperssão e funções da polícia política e tipo de transição democrática, pretendeu-se definir o
equilíbrio final entre medidas punitivas e de perdão, através de indicadores e tendências gerais
sobre os julgamentos finais (análise qualitativa da documentação oficial e individual do Serviço
de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e LP e análise estatística (com base numa amostra
não repersentativa) dos processos individuais dos Tribunais Militares de Lisboa e colecções de
acordãos do Supremo Tribunal Militar).
Em concordância com a literatura já produzida sobre a transição democrática
portuguesa e outras formas de ligar com o passado (Cerezales, 2003; Pinto, 2006; Rezola, 2006)
concluiu-se que o processo de criminalização e julgamento dos agentes e colaboradores da
PIDE se caracterizou por três momentos fundamentais,: 1) a fase de indefinição; 2) a fase de
reforço da legitimidade revolucionária; 3) a fase de reforço da legitimidade democrática.
A primeira fase (Abril de 1974 – Março de 1975) caracterizou-se pela indefinição do
processo, para a qual contribuem as relações institucionais existentes entre as forças políticas
conservadoras (ala spinolista), a elite militar (MFA) e a elite do antigo regime (ausência de
motivações, guerra colonial); a predominância de temas mais decisivos para a institucionalização
do novo regime político e características do mesmo (Parlamentar versus Presidencial; Sistema
federal versus independência das colónias; calendariazação das eleições para a Assembleia
Constituinte), ao mesmo tempo que se assistiu à espontânea emergência de reivindicações por
parte da sociedade civil (anti-fascista e comunista), à rápida instrumentalização e
posicionamento estratégico dos partidos políticos em função dos seus interesses (PS, PCP,
partidos de extrema-esquerda). Formalmente, esta fase correspondeu à detenção de vários
membros da polícia política na metrópole e nas colónias (cerca de 1000 em Junho) e à fuga de
vários inspectores com responsabilidades acrescidas, nomeadamente em casos de assassinato
(Rosa Casaco); à criação da “Comissão de Extinção” e à sua estrutura formal de funcionamento
(despacho do CEMGFA, 5 de Junho de 1974), apesar das constantes mudanças na direcção
(JSN – Rosa Coutinho, Galvão de Melo) e desenvolvimento de investigações sobre casos de
assassinato (Humberto Delgado, Dias Coelho e Ribeiro dos Santos), que não careciam de
legilação extraordinária.
A segunda fase (Março – Novembro de 1975) foi marcada pelo reforço da legitimidade
revolucionária, quer do ponto de vista das reivindicações, quer do ponto da legislação
extraordinária. Para isso contribuem as constantes acusações à ineficácia e inoperância da
“Comissão de Extinção”, paralelamente ao aparente reforço do domínio comunista (Miguel
Judas); a intensificação da reivindicações da sociedade civil mediante e acusações de
cumplicidades (fuga de alcoentre); as repercussões dos resultados eleitorais sobre o
posicionamento público dos partidos políticos (moderação do discurso PS). Formalmente, esta
fase correspondeu à publicação da lei de incriminação (Lei 8/75 de 25 de Julho), à criação de um
tribunal especial (Lei 13/75 de Novembro).
Na terceira fase (Novembro de 1975 – Janeiro de 1977) salienta-se o reforço da
legitimidade democrática e a irreversibilidade do processo, na sequência do fim do “período
revolucionário” e vitória das forças moderadas. Formalmente, esta fase foi marcada pela
estruturação e reforço legal dos procedimentos (Lei 16/75 de Dezembro, Decreto-Lei 13/76 de
Janeiro); pela publicação de legislação adicional de regulação os processos jurídicos: liberdade
provisória, recurso, legislação ordinária (Lei 16/75 e Lei 18/75 de Dezembro), pela aprovação da
nova Constituição (inclusão da Lei 8/75 nas disposições finais e transitórias), de definição de
circunstâncias atenuantes extraordinárias (Decreto-Lei 349/76 de Março), à qual o novo poder
legislativo (civil) reage com a publicação de uma lei de reforço da punição (Lei 1/77, de 12 de
Janeiro). A terceira fase estende-se ainda a todo o processo de consolidação democrática,
(julgamentos em tribunal militar). Os dados utilizados ilustram tendências no sentido de: 75% de
julgamentos, categorias coincidentes com a esturutra da instituição (maioria de agentes
menores), 18 meses de prisão preventiva sobrepondo-se às penas aplicadas, 68% de sentenças
até 6 meses.
Conclui-se que a transição democrática portuguesa fez um ajuste de contas com o seu
passado, mas a punição deu lugar à reconciliação com a consolidação do regime. Neste
processo, a não criminalização da repressão mais intensa – Guerra Colonial com
responsabilidade partilhada entre as forças armadas e polícia política – leva a concluir que a
criminalização e julgamento da polícia política portuguesa foi um processo de justiça transicional
punitivo que envolveu perdão e reconciliação, dada a natureza dos decisores e a marginalização
da elite civil e dos partidos políticos da esfera legislativa e processual.
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Keywords
Justiça transicional Transição democrática Polícia política Portugal Punição
