1917 – um ano charneira. Relações entre memória e cultura a partir dos relatos de António Manuel Trigo

Abstract

Todos os ensaios são um ponto de vista e esta tese, enquanto ensaio, é um ponto de vista sobre Memória, esse repositório de entidades físicas e etéreas, área epistemológica e noção de conhecimento com entrada e difusão algo tardias nas ciências sociais, mas que, ao mesmo tempo, manifesta suma relevância no nosso âmbito de estudo, em todos os momentos em que o desenvolvemos. A importância da Memória na nossa contemporaneidade académica, como aspeto cultural e das culturas, a maior parte das vezes num formato intangível da realidade individual e social, mas sempre matricial, torna-a merecedora de apreensão, descrição, interpretação e representação no âmbito do que estudamos, no nosso percurso de interesse e neste foco de abordagem. Como corpus usámos precisamente um livro de memórias, manuscrito inédito do funchalense António Manuel Trigo. O cidadão António Manuel Trigo, filho de Adelaide Virgínia dos Santos Trigo e de Adriano Augusto Trigo, nascido a 13 de Maio de 1892, na Freguesia de Santa Luzia, concelho e distrito do Funchal, viria a ser oficial do exército, era ainda cadete, em 1917, da Escola de Guerra. Frisamos sempre 1917, porque o escolhemos, por ser um ano seminal, um ano de todas as transformações, nomeadamente culturais, e que nos serviu exemplarmente como motivo de estudo. O elaborarmos raciocínios no âmbito dos estudos de cultura permitiu geminar o tronco comum dos exemplos, e foram muitos que a cultura produziu e cuja síntese trazida a este trabalho nos auxiliou durante toda a nossa formação e nesta etapa de conclusão teórica. Recorremos, por isso, a elementos de cultura que, à margem, acreditamos terem relação com António Manuel Trigo e, observados de perto, em especial na relação direta com o mesmo ano de 1917. Usámos, naturalmente, muitas fontes escritas, na tentativa de esgotar muitas das possibilidades que continham, apoiando-nos, entre outras, numa coleção particular de livros, textos e manuscritos que acumulámos ao longo dos anos, exatamente sobre os temas que considerámos estudar. Acresce, na base em que se construiu o que se segue, os testemunhos orais familiares em que os nossos próprios parentes nos contavam memórias vivas da Primeira República (e amplamente, como memórias vivas, também da Ditadura, do Estado Novo, da Revolução de Abril), sobretudo “coisas de avós” que viram e viveram o País de uma forma tão pessoal que nos legaram memórias ímpares, de cronologias efervescentes (recordações sempre exatas e quase sempre exaltadas), pois chegaram a ser, eles também, nos seus percursos, personagens e protagonistas desta longa narrativa. Conversas com a família de António Manuel Trigo preencheram lacunas geradas pela leitura do seu espólio, o espaço memorial que legou aos vindouros que por ele se interessassem.

Tous les essais sont un point de vue et cette thèse, en tant qu'essai, est un point de vue sur la mémoire, fondé sur un ensemble de mémoires individuelles inédites, évoluant sous la matrice herméneutique des études de la culture et des axes thématiques de la culture. Il s'agit d'une thèse sur l'importance de la mémoire individuelle pour une meilleure compréhension des mémoires collectives. Comme corpus, nous avons utilisé un vaste ensemble de textes réunis sous le titre Memórias, manuscrit inédit, d'António Manuel Trigo, né à Funchal, île de Madère, et cadet en 1917 de l’Escola de Guerra portugaise. Ce sont des souvenirs qui constituent en soi une vision personnelle opposée au regard imposé par les phénomènes sociaux et humains de leur époque, attentifs au matérialisme, au déterminisme fataliste, au positivisme et, pour beaucoup, remplissant une mission (correspondant à l'appel utopique-messianique de un nouveau monde hypothétique que les gens en général et la réalité portugaise en particulier semblaient rechercher). Cela ne nous a pas empêché de le cadrer dans le cadre de vie imposé par l'auteur des mémoires que nous avons étudiés et, ainsi, il y a un avant et un après: une première partie avant 1917 et une seconde partie sur 1917 et ses conséquences. Il existe également une relation directe avec un lieu spécifique, l'île de Madère, puisque, comme mentionné, Funchal est la ville natale d'António Manuel Trigo, l'auteur étudié. Ce travail isole également une perspective possible d´un mémoire collective de l'année 1917, peut-être l'une des plus cruciales de toute l'histoire du monde, la comprenant comme l'année au cours de laquelle le Portugal a été accusé de la fin brutale de la poursuite de l'idéalité encore cultivées ces dernières années, les rêves progressistes du républicanisme portugais, dans un scénario mondial où la réalité oppose la brutalité aux rêves et érige des barrières, de nouveaux schémas dystopiques, dictés par la violence à l'échelle mondiale et nationale. Le choix de cette année était aussi lié à l'idée de circonscrire le thème et l'objet à traiter et d'éviter au maximum l'absence de documents, même partiels, que nous imposerait une recherche plus large. Cette thèse poursuit des idées et des idéaux et la manière dont, dans un moment inédit et fracturant, ils auront acquis de nouvelles caractéristiques et de nouveaux concepts d'interprétation/application, se présente comme un format modèle au service de nouvelles propositions de lecture d'un moment de souvenirs si somptueux et singuliers. En même temps, il analyse l'envers de l'étude des événements, essayant ainsi de ne pas négliger les dimensions oniriques, les émanations affectives, idéologiques et idéalistes, les mythes, les utopies-dystopies, les chimères, les illusions - dont la somme est à la base de la compréhension de la culture humaine (Elliot, 1988) et ses réalisations les plus inattendues et les plus expressives.

All essays are a point of view and this thesis, as an essay, is a point of view on memory, based on a set of unpublished individual memories, evolving under the hermeneutic matrix of culture studies and the thematic axes of culture. It is a thesis on the importance of individual memory for a better understanding of collective memories. As corpus we used a memoir, unpublished manuscript, by António Manuel Trigo, cadet in 1917 of the Escola de Guerra, from Funchal. These are memories that constitute per se a personal vision opposed to the gaze imposed by the social and human phenomena of their time, attentive to materialism, fatalistic determinism, positivism and, for many, fulfilling a mission (corresponding to the utopian-messianic appeal of a hypothetical new world that people in general and the Portuguese reality seemed to be looking for). It did not prevent us from framing him within the framework of life imposed by the author of the memoirs we studied and, thus, there is a before and an after: a first part before 1917 and a second part about 1917 and its consequences. There is also a direct relationship with a specific place, the island of, since, as mentioned, Funchal is the hometown of António Manuel Trigo, the author studied. This work also isolates a possible perspective of the collective memory of the year 1917, possibly one of the most crucial in the entire History of the World, understanding it as the year in which, in Portugal, the abrupt end of the pursuit of ideality still cultivated in the last progressive desires of Portuguese republicanism is accused, in a global scenario where reality opposes brutality to dreams and erects barriers, new dystopian patterns, dictated by violence on a global scale and national. This year's choice was also related to the idea of circumscribing the theme and object to be treated and avoiding as much as possible the absence of documents, even partial, that broader research would impose on us. This thesis pursues ideas and ideals and the way in which, in an unprecedented and fracturing moment, they will have gained new characteristics and new concepts of interpretation/application, presents itself as a model format at the service of new proposals for reading a moment of memories so lavish and singular. At the same time, it analyzes the reverse side of the study of events, thus trying not to neglect oneiric dimensions, affective, ideological, and idealistic emanations, myths, utopias-dystopias, chimeras, illusions – the sum of which is the basis for understanding human culture (Elliot, 1988) and his most unexpected and expressive achievements.